Coexistência, engodo dos tolos
Robert Ali Bric de la Perrière, Frédéric Prat
NoMéxico, berço da diversidade do milho, uma contaminação de variedadeslocais pelas transgênicas foi revelada em 2001 universidade – aindaque, na época, o país não aceitasse OGMs
O governo norueguês está reativando um antigo projetode construção de uma galeria artificial no interior de uma montanhagelada, na ilha de Svalbard (no limite do Círculo Polar Ártico), a fimde salvaguardar a diversidade genética das sementes de plantascultivadas. Esse “cofre-forte do fim do mundo” acolherá dois milhões delotes de sementes de todas as variedades cultivadas conhecidas. ParaCary Fowler, diretor do Global Crop Diversity Trust, promotor doprojeto, “se o pior acontecer, isso [a reserva] permitirá ao mundoreconstruir a agricultura no planeta”. Dentre os doadores, destacam-sea Dupont e a Syngenta, duas multinacionais da agroquímica que controlamuma parte importante das licenças referentes às biotecnologias e àprodução de plantas geneticamente modificadas…
Se as indústrias patrocinadoras das culturastransgênicas levam a sério a necessidade de salvaguardar os recursosgenéticos das plantas, é porque diversos indicadores atestam acontaminação das plantas convencionais pelas plantas geneticamentemodificadas (PGM). O Grupo de Consultoria de Pesquisa AgrícolaInternacional, que abriga em seus bancos de genes mais de meio milhãode amostras de sementes das principais espécies cultivadas, estimou em2004 que, em curto prazo, a probabilidade de contaminação nas coleçõesde bancos de sementes seria grande para o milho e a colza e medianapara o arroz e o algodão – o que demandava atenção imediata.
Essa contaminação coloca também em perigo as fontes dediversidade no interior de uma mesma espécie, isto é, os centros deorigem de domesticação, localizados em algumas partes determinadas doplaneta. Por exemplo, no México, centro de origem da diversidade domilho, uma contaminação de variedades locais pelas variedadestransgênicas comerciais norte-americanas foi revelada em 2001 pelaspesquisas da universidade de Berkeley, ainda que, na época, o país nãoaceitasse os transgênicos. Em 2005, descobriu-se na Transilvânia(Romênia), centro de origem da domesticação dos Prunus(ameixeira, cerejeira, pessegueiro), experimentações com ameixeirastransgênicas resistentes ao vírus da Sharka e disseminadas em todocampo.
A estação de Bistrita acolheu, durante dez anos e sem aautorização oficial do governo de Bucareste, dezenas de espécimes dePGM fabricadas pela unidade de Bordeaux do Instituto Nacional dePesquisa Agronômica (INRA, em francês), no planejamento de um programasustentado pela Comissão Européia. No Iraque, centro de origem dotrigo, pouco depois da Autoridade Provisória da “coalizão” ter impostoo decreto 81, sobre a obrigação de reconhecimento das licenças sobre asvariedades de plantas, um programa da USAid criou 54 áreas destinadas aintroduzir as sementes de trigo norte-americanas “melhoradas” . Umasaída encontrada para os trigos transgênicos de Monsanto, bloqueados,em 2004, pela categoria trigo de exportação norte-americana e pelaforte mobilização da indústria italiana.
Os ratos alimentados com o milho Monsanto 863 desenvolveramanomalias nos órgãos internos e mudanças na composição sangüínea. Mas avariedade continua autorizada
Avanço avassalador das PGM
Desde sua primeira aparição no mercado, há dez anos, acultura das PGM estendeu-se a 90 milhões de hectares – ou seja, 1,8 %da área agrícola mundial. Para determinadas culturas industriais, comoa soja, as variedades GM (geneticamente modificadas) tendem asubstituir totalmente as variedades convencionais: mais de 90% nosEstados Unidos e na Argentina (ler o artigo de Pierre-Ludovic Viollat).As contaminações produzem-se ao longo das categorias, do banco degenes, passado pelos campos, (cruzamento pela polinização entre lotesvizinhos e espécies parentes) até a pós-colheita (mistura de sementesdurante o transporte, a estocagem e as transformações alimentares).Elas são maciças em certas regiões: soja no Brasil, colza no Canadá,milho em algumas regiões da Espanha. Elas são duráveis quando afetam ossolos e os estoques de sementes do selecionador.
A União Européia (UE) implantou, desde 1990, umaregulamentação de comercialização de OGMs submetida a um procedimentode avaliação de risco caso a caso – porém, sem levar em conta nenhumaquestão referente ao impacto sobre a grande diversidade de sistemasagrários e de ecossistemas. As fortes contestações populares e dascoletividades territoriais tinham resultado, em 1999, em uma moratóriasobre as autorizações de comercialização, que somente foram retomadasem 2004, após a adoção de uma nova diretriz (2001/18 CE) que leva emconta o princípio de precaução.
Foi justamente nesse período que os principais paísesprodutores de PGM (EUA, Canadá e Argentina) apresentaram uma queixacontra a UE junto à Organização Mundial do Comércio (OMC). Entretanto,para a surpresa de muitos, o relatório mediador de uma comissão deespecialistas não condena a Europa. Em conseqüência, o mecanismo deautorização fica, no essencial, limitado aos aspectos sanitários erelativos ao meio-ambiente. No entanto, o procedimento é extremamenteopaco e contestável. Em teoria, é o Conselho da União Européia (isto é,os ministros dos vinte e cinco países-membros) que decide; mas, por umdeslize que uma maioria qualificada deixa escapar de uma maneira ou deoutra, a autorização retorna em prática à Comissão. Esta última seapóia nos relatórios dos peritos, que analisam os estudos depericulosidade elaborados pelos próprios industriais, e não peloslaboratórios independentes.
No caso da autorização de milho Monsanto 863, porexemplo, os testes de toxicologia (obrigatórios) mostraram que os ratosalimentados com essa variedade desenvolveram anomalias nos seus órgãosinternos (rins bem menores) e mudanças na sua composição sangüínea. Nãoobstante, no seu relatório, a multinacional considera que as anomaliassão insignificantes: elas seriam devidas ao acaso e refletiriam asvariações normais existentes nos ratos. A autoridade alemã debiossegurança, ao vistoriar o estudo, assinalou “uma longa lista dediferenças significativas” entre os lotes de ratos, e criticou ametodologia utilizada. O milho Monsanto 863 continua, no entanto,autorizado…
Cúmulo: caberá ao cultivador de PGM, e não à empresa que produz assementes, subscrever um fundo de garantia. Todas as medidas decoexistência serão fixadas por decreto, sem debate
Resistência nas comunidades locais
Como o procedimento da autorização de comercializaçãode novos OGM não prevê o parecer do Parlamento Europeu, nem mais doComitê das Regiões ou do Comitê Econômico e Social Europeu, é atravésdas coletividades locais e territoriais que declararam “Fora OGM” quese organiza a oposição democrática na Europa. Ela se desenvolve muitorapidamente: 172 regiões e mais de 4500 coletividades pedem, na Cartade Florença, “disposições jurídicas que ofereçam, às regiões, acapacidade de definir seu próprio território (…) livre de OGM – semque as decisões sejam consideradas infração ao princípio comunitário delivre circulação das mercadorias”. Também querem condicionar acomercialização de OGM a uma exigência de utilidade para o consumidor epara a sociedade geral.
Na sua recomendação de 23 de julho de 2003, a ComissãoEuropéia pedia aos Estados-membros que organizassem a “coexistência”das categorias: GM, convencional e biológica. Um regulamento(1829/2003) define as regras de etiquetagem em função dos limitestolerados de presença de OGM. Na etiquetagem, a noção de limite éessencial: ela obriga a tolerar a marcação, e permite que alimentoscultivados por produtores que se opõem aos OGM não sejam facilmentedesclassificados pelas contaminações. Para as categorias convencionais,o limite é de 0,9 % de cada ingrediente, com a condição de que essapresença seja “fortuita ou tecnicamente inevitável”. Para a agriculturabiológica, que não aceita nenhum OGM, o limite de 0 % seria, como paratodos os outros produtos, reajustado para 0,9 %.
A Comissão acompanha suas recomendações sobre a”coexistência” com um importante apoio financeiro aos programas depesquisa… permitindo legitimá-la, embora os estudos de opiniãomostrem que os cidadãos europeus são majoritariamente opostos a umaalimentação GM. A Comissão acaba de produzir um relatório que procuraconfortar: “É possível produzir sementes tradicionais (não GM) naEuropa com uma presença acidental de material geneticamente modificadonão superior a 0,5 %, sem alterar as práticas agrícolas no que serefere à beterraba destinada à indústria açucareira e o algodão, oupromovendo pequenas mudanças, no que diz respeito ao milho…”
Sistemas de controle de produções agrícolas cada vezmais sofisticados estão sendo implantados. O que existe na Alemanhaprevê o registro público de PGM, especificando a localização cadastral,o que permite às autoridades nacionais organizar a informação referenteà vizinhança e arbitrar compensações em caso de prejuízo econômico.Além disso, o Instituto de Proteção da Segurança do Cidadão (IPSC),ligado ao Centro Comum de Pesquisa da Comissão Européia, trabalha nanumeração dos lotes de OGM e imediações, para o controle das culturas.
“Coexistência” e hipocrisia
Por sua parte, após ser repreendido, devido ao seuatraso, pela Corte de Justiça da Comunidade Européia (CJCE) e pelaComissão Européia, o governo francês se esforça, apressado, em transporduas diretrizes para o direito nacional: uma sobre a utilizaçãoconfinada de microorganismos GM; outra, sobre a disseminação dolosa deOGM no meio ambiente. Neste último projeto de lei “relativo aosorganismos geneticamente modificados” proposto em 8 de fevereiro de2006 no Senado, antes de ser encaminhado em fins de março à AssembléiaNacional, a informação do público não é respeitada (os estudospermanecem confidenciais); certas aprovações anteriores serãosubstituídas por simples declarações; as coletividades estão excluídasdas decisões; e os agricultores contaminados deverão cumprir váriascondições, se quiserem ser indenizados. O cúmulo: caberá ao cultivadorde PGM, e não à empresa que produz as sementes, subscrever um fundo degarantia. Enfim, todas as medidas de coexistência serão fixadas pordecreto, sem debate democrático.
Ceifeiros Voluntários, um movimento de desobediência civil nascidoem 2003, conta, na França, com mais de 5 mil militantes, para ceifar oslotes de experimentação de PGM
Na União Européia, quase 60 % dos cultivos têm extensãoinferior a 5 hectares, o que torna irreais as medidas da pretensa”coexistência” entre PGM e plantas não geneticamente modificadas. Naverdade, em nome da “liberdade de escolha” e da democracia, os sistemasimplantados pela iniciativa da Comissão Européia conduzem,inevitavelmente, a uma regulamentação autoritária, impondo aosagricultores o tipo de cultura e as variedades no espaço e no tempo querespondem aos interesses do lobby dos produtoresde sementes. A agricultura totalitária, denunciada, há dez anos,durante as ações da Confederação Rural sobre as primeiras culturas deplantas transgênicas licenciadas, torna-se pouco a pouco realidade.
O conceito de “coexistência” foi inventado, em todos osseus elementos, pela Comissão Européia e pela indústria – para que osOGM fossem aceitos, embora as contaminações das sementes e das culturassejam inevitáveis e aumentem a cada ano. Elas afetam todas as culturas,mas provocam um prejuízo de gravidade particular às variedadescampestres de conservação, àquelas ligadas a uma denominação de origem,e às culturas biológicas e biodinâmicas que elas condenam à extinção.Elas não permitem mais o exercício do direito de utilizar sementes semnenhum OGM, tanto hoje como para as gerações futuras, nem o do direitode consumidor de comprar os produtos sem OGM. Deste ponto de vista, otítulo do colóquio que a Comissão Européia organiza em Viena de 4 a 6de abril – “Liberdade de escolha. Coexistência entre as culturasgeneticamente modificadas, as culturas convencionais e as culturasbiológicas” – revela uma flagrante hipocrisia.
Do contágio à resistência
Os prejuízos causados são inestimáveis. Na origem dascontaminações, encontram-se tanto o comércio das sementes contaminadascomo o fluxo de pólen entre os vizinhos. Por essas razões, aquele queobtém e aquele que importa as PGM são tidos como os responsáveis portoda a contaminação e devem arcar com a totalidade dos custos dasegregação das categorias, do campo até a venda. Os instrumentosjurídicos regionais, que condicionam as culturas de PGM aos estudos deimpacto sobre os sistemas agrários e os produtos de qualidade(biológicas, AOC, etc), são os esquemas jurídicos que se tornarãoobrigatórios em qualquer procedimento de autorização da comercializaçãodo OGM na União Européia.
A aprovação forçada das PGM, por uma coalizão deinteresses privados representados pela Comissão Européia e a maiorparte dos governos, não podia deixar de suscitar reações em inúmeroscidadãos europeus. Testemunho disso são as declarações de coletividadesque se declaram “zonas livres de OGM” e, igualmente, o movimentoconhecido por Ceifeiros Voluntários, onde cada um assumeindividualmente suas responsabilidades, sem se filiar à da organizaçãoà qual pertence. Esse movimento de desobediência civil, nascido em2003, no planalto de Larzac, pode contar hoje, na França, com mais de 5mil militantes, homens e mulheres, para ceifar os lotes deexperimentação de PGM. Também se espalha por outros países europeus.Muitos julgamentos condenaram financeiramente determinados ceifeiros, emuitos deles são hoje ameaçados de terem seus bens tomados.
Entretanto, as coisas evoluem: dois julgamentos – um dotribunal correcional de Orléans, em dezembro de 2005, e o outro dotribunal de Versalhes, em janeiro de 2006, acabam de reconhecer alegalidade do movimento dos ceifeiros, em nome do “estado denecessidade” que evoca o princípio de precaução inscrito na Carta doMeio-ambiente, com valor constitucional, votada pelo Congresso emfevereiro de 2005. Quando a democracia representativa engasga, e quandoo destino da biodiversidade se reduz às sementes congeladas de umagruta do pólo Norte, é a resistência que cria o direito.
(Trad.: Leonardo Teixeira da Rocha)
http://diplo.uol.com.br/2006-04,a1287